Descoberta dos Raio-X (continuação)
O fortuito 8 de novembro de 1895
Na última década do século passado, as pesquisas sobre os raios catódicos constituíam o tema mais efervescente em toda a Europa, de modo que parece natural o desejo de Roentgen, então diretor do Instituto de Física da Universidade de Würzburg, de repetir algumas das experiências divulgadas. De acordo com Fuchs e Romer, os experimentos de Roentgen tiveram início em 1894, mas quase toda a literatura histórica dá conta de que esses trabalhos iniciaram em 1895. Mais adiante discutiremos esse pequeno mistério. Apresentaremos aqui o que se sabe dos fatos ocorridos a partir daquela sexta-feira, 8 de novembro de 1895.
A literatura sobre a evolução dos fatos apresenta algumas controvérsias, mas uma coisa parece certa: Roentgen não trabalhou com os raios X mais do que 3 anos. Além disso, em menos de 8 semanas ele descobriu praticamente todas as propriedades fundamentais desses, escreveu três trabalhos sobre o assunto, e já em 1897 estava de volta aos seus temas favoritos, abandonando um assunto de tanta fertilidade, que proporcionou a obtenção do Prêmio Nobel de Física, não apenas a ele (1901), como também a Lenard (1905), Thomson (1906), Laue (1914), W.H. Bragg e W.L. Bragg (1915), Barkla (1917) e Siegbahn.(1924).
Numa carta enviada em fevereiro de 1896 ao seu grande amigo Ludwig Zehnder, Roentgen diz que, durante os experimentos, não falou a ninguém sobre o seu trabalho, exceto à sua esposa. Assim, o parágrafo que inicia o presente artigo, extraído de um relato de Manes, pode ser falso; ele foi usado aqui como força de expressão dramática. O que se sabe é que em 28 de dezembro de 1895 Roentgen encaminhou ao presidente da Sociedade de Física e Medicina de Würzburg (SFMW) um manuscrito, intitulado "Sobre um novo tipo de raios" ("On a new kind of rays", ou, em alemão, "Ueber eine neue art von strahlen"), que ele considera como uma "comunicação preliminar". Pela profundidade e concisão com que os resultados são apresentados, não surpreende que este tenha sido o mais importante dos três trabalhos publicados por Roentgen. Em 9 de março de 1896 ele envia, à mesma sociedade, sua segunda comunicação, com o mesmo título da primeira. Em seu artigo, Watson transcreve essas duas comunicações; as versões originais, em alemão, e as traduções, em inglês. Segundo Jauncey, o terceiro artigo é datado de 10 de março de 1897. Na edição de 23 de janeiro de 1896, Nature publica uma versão inglesa da primeira comunicação, sendo imediatamente reproduzida em Science, Scientific American Supplement, Journal of the Franklin Institute e na revista popular Review of Reviews (semelhante a Reader’s Digest). A revista alemã Annalen der Physik, em sua edição de 1o de janeiro de 1898, reproduz os três artigos. Cópias do primeiro trabalho, com a radiografia de uma mão, foram enviadas, entre o final de dezembro e o início de janeiro, aos principais cientistas da Europa, que assim tomaram conhecimento da grande descoberta, uma vez que os anais da SFMW tinham circulação bastante limitada, praticamente local.
Roentgen recebeu inúmeros convites para conferências, mas parece que declinou de todas, excepto uma, apresentada na SFMW, em 23 de janeiro de 1896, na qual obteve enorme sucesso, apesar da sua reconhecida timidez. Nessa conferência, ele tirou várias radiografias, inclusive uma que ficou famosa, da mão do grande anatomista, professor da Universidade de Würzburg, A. von Kölliker. A cada radiografia que ele conseguia, a audiência reagia com entusiasmo e estrondoso aplauso.
As duas primeiras comunicações
As duas primeiras comunicações de Roentgen, que ele considerava como uma única, são belos exemplos de objetividade e concisão, sem deixar de lado a profundidade que o tema requer. Impressiona a quantidade de dados obtidos em tão pouco tempo, mas frustra a expectativa do leitor interessado na heurística da investigação e na montagem do equipamento; não há qualquer informação detalhada nesse sentido. Ele informa que usou uma grande bobina de Ruhmkorff, mas não especifica que tipo de tubo de vácuo usou; mais adiante discutiremos essa questão.
Os resultados são apresentados em 21 tópicos, muitos dos quais contendo um único parágrafo, ao longo dos quais Roentgen discute praticamente todas as propriedades fundamentais dos raios X. Na ordem em que aparecem nas comunicações, são as seguintes essas propriedades. Em primeiro lugar, os raios podem ser detectados através de cintilações numa tela fosforescente, ou de impressões numa chapa fotográfica. Diferentemente dos raios catódicos, os raios X podem ser observados mesmo quando a tela é colocada a uma distância de aproximadamente dois metros do tubo de vácuo (os raios catódicos não ultrapassam mais do que oito centímetros no ar). Roentgen testa a transparência de uma quantidade enorme de materiais, verificando que duas propriedades são importantes: a densidade do material e a espessura; quanto mais denso e mais espesso, menos transparente. Depois de testar a transparência, Roentgen investiga efeitos de refração e de reflexão. Não observa nem um nem outro, embora tenha ficado em dúvida quanto à reflexão. Tenta defletir os raios X com o auxílio de um campo magnético, mas não consegue, e aqui estabelece uma das fundamentais diferenças, do ponto de vista experimental, entre os raios X e os raios catódicos, pois estes são facilmente defletidos por uma campo magnético.
No tópico 12 ele discute uma das questões mais fundamentais para a identificação dos raios X. Ele conclui que esses raios são produzidos pelos raios catódicos na parede de vidro do tubo de descarga! Na seqüência ele informa que observou raios X produzidos pelo choque de raios catódicos numa chapa de alumínio, e promete testar outros materiais. Um ano depois, em 17 de dezembro de 1896, o físico inglês Sir George Stokes demonstrou que os raios X são produzidos pela desaceleração de partículas carregadas, um fenômeno que ocorre quando, por exemplo, elétrons com alta energia penetram num material pesado! Ou, na linguagem da época, quando os raios catódicos penetram num material pesado!
No tópico 17, que encerra a primeira comunicação, ele discute a natureza dos raios X. Obviamente descarta a identidade com os raios catódicos. Sugere que poderia ser algo como a luz ultravioleta, devido aos efeitos fluorescentes e à impressão de chapas fotográficas, mas no cotejamento de outras propriedades chega à conclusão de que os raios X não podem ser da mesma natureza da luz ultravioleta usual. Finaliza o artigo sugerindo que os raios X poderiam ser vibrações longitudinais no éter. Como se sabe, essa hipótese era usada pelos alemães (Goldstein, Hertz, Lenard, e outros) para explicar os raios catódicos.
No início da segunda comunicação, tópico 18, Roentgen examina a questão do efeito dos raios X sobre os corpos eletrizados, fazendo referência aos resultados publicados por Lenard. De imediato sugere que os efeitos atribuídos por Lenard aos raios catódicos, eram, de fato, devidos aos raios X produzidos na janela de alumínio do seu tubo de vácuo. (Lenard estava com os raios X ali, na sua frente, e não sabia!)
Nos tópicos finais, 19, 20 e 21, discute questões de ordem prática: operação da bobina de indução, manutenção do vácuo e diferença entre alumínio e platina, no que concerne à intensidade do feixe produzido.
O que mais, além do acaso?
Para se entender a descoberta dos raios X como fruto de um planejado trabalho científico, muito mais do que um evento fortuito, seria necessário o conhecimento da heurística que orientou o planejamento da pesquisa. Infelizmente, Roentgen não dá qualquer esclarecimento sobre essa heurística. Como vimos acima, seus relatos descrevem objetivamente os resultados obtidos, sem grandes elucubrações ou conjecturas teóricas. Ao historiador resta a alternativa de especular, a partir de fatos conhecidos, na tentativa de montar um esquema racional plausível para a grande descoberta. Duas dúvidas jamais foram esclarecidas na literatura:
Teria Roentgen usado vários tipos de tubos de vácuo? Se as informações de Fuchs e Romer estão corretas, por que Roentgen substituiu o tubo de Lenard por um tubo convencional (Hittorf ou Crookes)?
Por que envolver o tubo com uma cartolina preta?
Numa entrevista concedida ao jornalista Dam, em janeiro de 1896, Roentgen informa que estava usando um tubo de Crookes no momento da descoberta (8 de novembro de 1895). Numa carta enviada a Zehnder (fevereiro de 1896), ele diz que usou uma bobina de Ruhmkorff 50/20 centímetros, com interruptor Deprez, e aproximadamente 20 ampères de corrente primária. O sistema é evacuado com uma bomba Raps, ao longo de vários dias. Os melhores resultados são obtidos quando os eletrodos da descarga estão afastados por uma distância de aproximadamente 3 cm. Mais uma vez, não especifica o tipo de tubo usado; diz apenas que o fenômeno pode ser observado em qualquer tipo de tubo de vácuo, inclusive em lâmpadas incandescentes.
Que Roentgen descobriu os raios X por acaso, parece não haver dúvida. De que outra forma algo tão inesperado poderia ser descoberto? Agora, sobre o que não se tem certeza é qual foi o acidente que proporcionou a descoberta, e em que momento ele ocorreu. É difícil de imaginar que no primeiro arranjo experimental Roentgen tenha envolvido o tubo com a cartolina. O que ele esperava ver atravessando a cartolina preta, senão raios X? Como é possível, em menos de dois meses, alguém abordar aquela enorme quantidade de aspectos fundamentais de um fenômeno desconhecido, por mais genial que seja? Por outro lado, se o "verdadeiro" momento da descoberta não é o 8 de novembro, qual a razão para Roentgen fazer-nos crer que esta é a data correta?
Puro acidente ou não, o fato é que a repercussão da descoberta foi de tal ordem que, com muita justiça, o primeiro Prêmio Nobel de Física (1901) foi concedido a Roentgen.
A repercussão imediata
Em termos de repercussão imediata, a descoberta dos raios X parece ser um caso único na história da ciência. A observação do eclipse solar de 1919, que comprovou parte da teoria da relatividade geral de Einstein, é um rival de respeito quando se considera a repercussão na imprensa, mas não chega a competir, nem de leve, quando se considera a repercussão no meio científico (A recente descoberta das cerâmicas supercondutores também teve forte impacto na imprensa e na comunidade científica, mas não temos conhecimento quantitativo desse impacto). As notáveis aplicações na medicina foram imediatamente percebidas pelo próprio Roentgen, que fez uma radiografia da sua mão. Pesquisadores em todo o mundo passaram a repetir a experiência de Roentgen, não apenas na tentativa de descobrir novas aplicações, como também com o objetivo de compreender o fenômeno, uma tarefa que desafiou a inteligência humana ao longo de quase três décadas.
A primeira grande questão referia-se à natureza da radiação. Aliás, o levantamento do noticiário feito por Jauncey mostrou a confusão que se fazia entre raios X e raios catódicos. Não apenas os jornais usavam indistintamente esses dois termos, mas também alguns físicos. É importante salientar que a descoberta de que os raios catódicos eram elétrons foi feita por Thomson dois anos após a descoberta de Roentgen. Mesmo os cientistas que não confundiam raios catódicos com raios X, não sabiam do que se tratava essa coisa descoberta por Roentgen. Existiam duas escolas de pensamento. Uma, à qual pertenciam os ingleses Thomson e Stokes, acreditava que os raios X eram vibrações transversais no éter, da mesma forma como a luz ordinária. A outra escola, à qual pertencia o alemão Lenard, defendia que os raios X eram vibrações longitudinais no éter. Depois de extensivos experimentos, a polêmica foi decidida favoravelmente à escola inglesa.
Quando, em 1905, Einstein propôs a idéia do fóton de energia, um conceito que admitia um caráter corpuscular para a luz, foi possível calcular o comprimento de onda associado aos raios X, mas evidências experimentais do caráter corpuscular só surgiram com os trabalhos de Bragg, depois de 1908. Por volta de 1912, mais confusão veio à tona. Naquele ano, Laue e seus estudantes W. Friedrich e P. Knipping descobriram a difração dos raios X em cristais de sulfeto de zinco (ZnS), uma experiência definitiva para o estabelecimento do caráter ondulatório dos raios X. A confusão causada por essa dualidade só foi resolvida com os trabalhos de de Broglie, a partir de 1923. Portanto, a visão que se tem hoje dos raios X, é que eles pertencem ao espectro eletromagnético, e como tal apresentam a dualidade partícula-onda: dependendo das circunstâncias, evidenciam propriedades corpusculares ou ondulatórias. Ao espectro eletromagnético pertencem a luz visível, as ondas de rádio, o ultravioleta, o infravermelho e as radiações gama. Fundamentalmente, o que diferencia uma radiação de outra é o comprimento de onda. Para se ter uma idéia, o comprimento de onda da luz visível é mil vezes maior do que o dos raios X.
Além desse enorme interesse despertado na comunidade científica, é interessante avaliar o interesse despertado na comunidade leiga, que muito contribuiu para a criação de um folclore em torno do fenômeno. A título de ilustração, vejamos algumas das mais pitorescas notícias publicadas pelo jornal norte-americano St. Louis Post-Dispatch. No dia 11 de fevereiro de 1896, saiu uma nota dando conta de uma invenção de um professor de Perugia (Itália), que permitia ao olho humano ver os raios X. No dia 13 de fevereiro, o jornal informava que Roentgen havia iluminado seu cérebro e visto sua pulsação. No dia seguinte, uma matéria relatava a opinião defendida por alguns cientistas, segunda a qual a descoberta de Roentgen poderia estabelecer novas teorias sobre a criação do mundo.
Outras notícias extravagantes são relatadas no artigo de Jaucey. Em um jornal não identificado, uma matéria alertava para a vulnerabilidade a que todos estavam sujeitos depois da descoberta dos raios X. Qualquer um armado com um tubo de vácuo, dizia o jornal, podia ter uma visão completa do interior de uma residência. Outras notícias sugeriam aplicações fantásticas para os raios X, como a de ressucitar pessoas eletrocutadas. Um famoso engenheiro eletricista, defendendo a hipótese de que os raios X ou os raios catódicos eram ondas de som, afirmava ter ouvido a emissão desses raios. Outro engenheiro eletricista fez tentativas para fotografar o cérebro humano, mas não obteve sucesso.
O caráter sensacionalista que o assunto estava despertando, motivou o New York Times a alertar, em 15 de março de 1896: "Sempre que algo extraordinário é descoberto, uma multidão de escritores apodera-se do tema e, não conhecendo os princípios científicos envolvidos, mas levados pelas tendências sensacionalistas, fazem conjecturas que não apenas ultrapassam o entendimento que se tem do fenômeno, como também em muitos casos transcendem os limites das possibilidades. Este tem sido o destino dos raios X de Roentgen".
Essa enorme curiosidade levou muita gente a correr sérios riscos de saúde ao realizar suas tentativas de novas aplicações dos raios X. No dia 29 de março de 1896, o jornal St. Louis Globe-Democrat fazia o primeiro alerta público sobre o perigo dos raios X para os olhos. A propósito, há uma história, aparentemente folclórica, segunda a qual uma sapataria de Nova York tinha como grande apelo mercadológico o fato de que os sapatos sob encomenda eram testados com o auxílio dos raios X!
Como os raios X são produzidos
Nas suas publicações Roentgen não especifica o tipo de equipamento utilizado, mas não é difícil imaginar os possíveis componentes do seu arranjo experimental: uma bateria de corrente contínua, uma bobina de indução, um tubo de vácuo e uma bomba de vácuo. Incrementados por fantásticos desenvolvimentos tecnológicos, e recebendo diferentes denominações, esses componentes continuam em uso na moderna pesquisa científica. Na época de Roentgen, eles eram conhecidos pelos nomes dos seus descobridores. Assim, as principais baterias eram as de Volta (inventada em 1800) e as de Bunsen (1843). Entre as bobinas de indução, as de Ruhmkorff (1851) eram as mais famosas.
No que se refere à utilização do vácuo, a primeira experiência que se tem notícia foi realizada pelo italiano Gasparo Berti, por volta de 1640. A partir desses experimentos, passando pelo barômetro de Torriceli (1644) e pela primeira bomba de vácuo construída por Guericke (1650), chegamos às diversas bombas disponíveis no final do século passado, entre as quais se destacam: a bomba de pistão-duplo de Hauksbee (1709), as bombas de mercúrio de Geissler (1855), de Toepler (1862) e de Sprengel (1873), e a bomba de óleo de Fluess (1892). Na carta enviada a Zehnder, Roentgen informa que usou uma bomba Raps, cuja descrição não se encontra na literatura pertinente.
A elaboração de tubos de vácuo para observação de descarga elétrica teve início com os trabalhos de William Morgan, por volta de 1785, e consistência experimental com os resultados obtidos por Faraday, por volta de 1833. Todavia, foi somente depois dos desenvolvimentos das bombas de vácuo, ocorridos depois de 1850, que as pesquisas sobre descargas elétricas em gases rarefeitos tiveram considerável impulso. Em conseqüência, os tubos de vácuo mais conhecidos levam os nomes dos pesquisadores dessa época. Destacam-se os tubos de: Geissler, Pluecker, Hittorf, Crookes e Lenard.
A título de recuperação histórica, apresentaremos breves descrições dos possíveis equipamentos utilizados por Roentgen.
A bobina de Ruhmkorff, funcionando segundo o princípio do transformador de corrente, é capaz de produzir altas voltagens. Ela contém duas bobinas enroladas em um núcleo de ferro, e isoladas entre si. A bobina interna (primária) é feita com um fio relativamente curto (de 30 a 50 metros), enquanto a externa (secundária) é feita com um fio muito longo (centenas de quilômetros). Para o funcionamento do equipamento, usa-se uma bateria de corrente contínua (p. ex. bateria de Volta) para fornecer uma determinada voltagem à bobina primária. Quando a corrente é subitamente interrompida, uma voltagem maior é induzida na bobina secundária. O fator de transformação da voltagem é proporcional à razão dos comprimentos dos fios. As bobinas utilizadas no final do século passado produziam tensões de milhares de volts. A interrupção da corrente pode ser realizada, por exemplo, com o auxílio de um interruptor usado nas transmissões telegráficas de código Morse. As potências dessas bobinas, medidas pelo comprimento da centelha que elas produziam, serviam para classificar os laboratórios da época. Para se ter uma idéia da ordem de grandeza, a Royal Institution of London preserva uma grande bobina de Ruhmkorff com 280 milhas de fio na bobina secundária, e capaz de produzir centelhas com 42 polegadas de comprimento.
Parece certo que o primeiro tubo de vácuo utilizado por Roentgen foi um tubo de Lenard, mas, aparentemente, ele comprou outros tubos de raios catódicos convencionais. A diferença essencial entre um e outro tipo de tubo, é que o de Lenard possui uma janela de alumínio, projetada para permitir o estudo dos raios catódicos no seu exterior. Confeccionados em vidro, esses tubos possuíam apenas dois eletrodos no seu interior. Com o uso cada vez mais freqüente dos raios X, outros tubos passaram a ser construídos. Até 1913, o mais usado era o tubo de focalização, mas logo depois passou a ter larga aceitação o tubo de Coolidge, um modelo ainda usado nos dias atuais.
Do que se sabe, podemos imaginar o seguinte procedimento adotado por Roentgen: os terminais da bobina de Ruhmkorff foram ligados aos eletrodos do tubo de vácuo; com a manipulação de um interruptor do tipo telégrafo alta voltagem era produzida entre os terminais; o choque do feixe de raios catódicos (elétrons) com o anodo (eletrodo positivo) produzia os raios X. Na essência, o procedimento utilizado atualmente é o mesmo. Costuma-se distinguir dois tipos de raios X produzidos nesse processo. Um deles constitui o espectro contínuo, bremsstrahlung em alemão, e resulta da desaceleração do elétron durante a penetração no anodo. O outro tipo é o raio X característico do material do anodo. Assim, cada espectro de raios X é a superposição de um espectro contínuo e de uma série de linhas espectrais características do anodo.
Os Raios X e a Tabela Periódica
Por volta de 1913, Moseley mediu as freqüências das linhas espectrais dos raios X característicos de cerca de 40 elementos. A partir do gráfico da raiz quadrada da freqüência versus o número atômico Z do elemento, ele obteve uma relação que passou a ser conhecida como lei de Moseley (veja detalhes no texto sobre os conceitos elementares de raios X). A repercussão imediata deste resultado foi a alteração da tabela periódica. Esse trabalho de Moseley teve papel importantíssimo na consolidação e aceitação internacional do modelo de Bohr. Na verdade, foi o primeiro dos trabalhos experimentais a confirmar as predições de Bohr. Em carta escrita a Bohr no dia 16 de novembro de 1913, Moseley observa que a sua fórmula poderia ser escrita numa forma idêntica àquela obtida com o modelo de Bohr.
Antes do trabalho de Moseley o número atômico era associado à posição do átomo na tabela periódica de Mendelev, a qual distribuía os elementos de acordo com o seu peso. Moseley mostrou, por exemplo, que o argônio deveria ter Z=18, ao invés de Z=19 (conforme a tabela de Mendelev). Por outro lado, o potássio deveria ter Z=19, ao invés de Z=18. Ele também mostrou que o cobalto deve preceder ao níquel, apesar do peso atômico do Co ser maior do que o do Ni. De acordo com Mendelev, o número atômico era aproximadamente igual à metade do peso atômico. Moseley definiu o peso atômico como igual ao número de elétrons do átomo eletricamente neutro.
Comparando-se as expressões obtidas por Moseley com a fórmula de Balmer-Rydberg deduzida por Bohr, vê-se que elas diferem pela presença de uma constante subtrativa ao valor de Z. Moseley explicou-a como sendo devido ao efeito de blindagem da carga nuclear pelos elétrons orbitais mais intensos.
A lei de Moseley apresentava resultados bastante diferentes daqueles do paradigma científico vigente. Através dela Moseley deduziu que entre o hidrogênio e o urânio, deveria haver exatamente 92 tipos de átomos, cujas propriedades químicas eram governadas por Z, e não pelo peso atômico. Isto significava dizer que a tabela periódica devia seguir a ordem crescente do número atômico e não a do peso atômico. Obedecida essa seqüência, alguns lugares daquela tabela ficaram vagos, os correspondentes a Z = 43, 61, 75, 85 e 87. Por essa época, havia uma grande polêmica entre os químicos a respeito do número exato de terras raras; discutia-se se estas iam de Z=58 a Z=71 ou a Z=72.
O grande estudioso das terras raras era Georges Urbain, sendo ele inclusive o descobridor de uma delas, o lutécio (Z=71), em 1907. Em 1911, Urbain pensou ter isolado outra terra rara, com Z=72, a que chamou de céltio. No entanto, os métodos químicos de análise até então usados eram complicados e incertos. Ao ouvir falar, em 1914, do método de Moseley, Urbain deslocou-se da França para a Inglaterra, levando amostras de terras raras, inclusive uma do provável céltio. Em poucas horas Moseley as examinou e as classificou sem, no entanto, confirmar o céltio. A amostra deste, observou Moseley, nada mais era do que uma mistura de terras raras conhecidas. Urbain ficou tão impressionado com o trabalho de Moseley que resolveu divulgá-lo na comunidade dos químicos. Apesar dessa postura, Urbain continuou acreditando ser o elemento Z=72 uma terra rara, e prosseguiu em sua busca. Essa crença foi fortemente renovada quando em maio de 1922, Alexandre Dauvillier anunciou ter isolado o céltio, através de uma análise do espectro de raios-X do tipo L de amostras contendo as terras raras ytérbio (Z=70) e lutécio. Essa notícia foi tão fantástica que chegou a impressionar Rutherford, pois desde 1914 ele acompanhava com grande interesse a polêmica sobre ser ou não ser uma terra rara, o elemento 72. Convicto de que essa polêmica havia encerrado, Rutherford escreveu uma carta à Nature (17/06/1922) na qual dizia que um dos lugares vagos da tabela periódica de Moseley acabara de ser preenchido.
Os físicos dinamarqueses, com base no modelo de Bohr, afirmavam que o elemento 72 devia ser um metal similar ao zircônio. O próprio Bohr fizera esta afirmação em sua sexta "lecture" Wolfskehl, ministrada em Göttingen, no dia 21 de junho de 1922. Ao ler a carta de Rutherford, na Nature do dia 17, Bohr chegou a pensar que sua afirmativa estava errada, tanto que manifestou essa opinião em carta enviada a James Franck em 15 de julho do mesmo ano. No entanto, ao saber que Dirk Coster, um especialista em espectroscopia de raios-X, não concordava com a interpretação de Dauvillier, Bohr resolveu convidá-lo a trabalhar em Copenhague para que, juntamente com von Hevesy, os três pudessem dirimir tão polêmica questão. Coster chegou a Copenhague em setembro, iniciando imediatamente a busca do elemento 72 em minérios de zircônio. No dia 11 de dezembro, poucos minutos antes de proferir sua "Nobel lecture", Bohr recebeu um telefonema de Coster dando conta de resultados positivos. No final da sua "aula Nobel", Bohr anunciou a importante descoberta. No volume 111 de Nature (20/01/1923), em carta assinada por Coster e von Hevesy, o mundo científico fica sabendo da descoberta do háfnio, o elemento com número atômico 72. O nome foi dado em homenagem a Copenhague, que em latim significa hafniae. Segundo Mehra e Rechenberg, essa descoberta constituiu-se no maior triunfo de Niels Bohr.
Com relação aos elementos previstos por Moseley, é oportuno salientar que o elemento 75, o rénio, foi descoberto em 1925, pelo casal Noddack. O elemento 87, descoberto em 1939, por Marguerite Perey, recebeu o nome de frâncio e pertence a uma família radioativa natural. Os demais elementos (43, 61 e 85) foram obtidos artificialmente. Sendo suas vidas-médias muito curtas, esses elementos não podiam ser naturalmente produzidos, ou pelo menos observados.
Fonte: página do Instituto de Física - UFRGS